O papel e o valor do ensino da geografia
Pierre Monbeig
Concordamos todos que, se a maior parte do público
culto tem uma idéia mais ou menos exata do que são a biologia, a geologia, a
economia ou a sociologia, o mesmo público não acompanha o progresso das
ciências geográficas, quando não ignora sua existência. Para uns a geografia é
confundida com narrativas de viajantes; um geógrafo é um explorador, a rigor um
cartógrafo; traz de suas viagens narrativas agradáveis de ouvir-se,
sobretudo se tem a habilidade de ilustrá-las com belas imagens. Para outros,
talvez mais numerosos, a geografia é uma lembrança extremamente penosa de sua
infância. Seu nome evoca listas indigestas de nomes de lugares ou dados
numéricos, lições atrozes que somente os menos inteligentes e os mais
obstinados de nossos condiscípulos chegavam a recitar razoavelmente. Os
espíritos brilhantes, ao contrário, mostravam-se rebeldes. E ficamos
satisfeitos quando nossos filhos recebem uma nota má porque não souberam de cor
a lista das estações da Central do Brasil entre Rio e São Paulo, ou as
altitudes exatas dos vulcões andinos; a fraqueza em geografia é uma espécie de
teste de inteligência!
Portanto, na melhor das hipóteses, a geografia é
tida como a irmã intelectual do turismo. Na pior elas hipóteses, a geografia é
uma tortura gratuita imposta às crianças e pergunta-se como seres sensatos
puderam tornar-se geógrafos! Se são corretos esses dois modos de ver, é
claro que a geografia é inútil, quando não perigosa; é um absurdo ensiná-la, mais ainda praticá-la, e torna-se urgente fechar
também os departamentos de geografia das faculdades de filosofia e instituições
como o Conselho Nacional de Geografia! A menos que consigamos mostrar que a
geografia contribui para o enriquecimento das mentes jovens e a sua formação. A
menos também que possamos provar a sua utilidade num mundo onde toda e qualquer
ciência é também uma técnica, onde toda pesquisa leva a dar um instrumento útil
à coletividade. É mister, portanto, estabelecer o valor a geografia no ensino e
determinar sua utilidade como moderno instrumento de trabalho.
Comecemos fixando a posição exata da geografia
moderna, diante da importância quase exclusiva que atualmente se dá à
memorização no ensino. Geógrafo algum deixará de condenar esta pseudo-geografia.
Todavia, convém lembrar que a verdadeira pedagogia não deixa de recorrer às
funções da memória. Estas só se desenvolvem na medida em que passaram por um
treino inteligente, assim como acontece com todas as outras atividades
psicológicas ou físicas. Também não se trata de oposição sistemática a qualquer
ensino de memória, mas de
oposição radical ao ensino exclusivamente baseado na memória e que a atravanca
com um trambolho inútil. Nada se pode aprender sem esforço de memória e sem
a aquisição de uma nomenclatura, por mínima que seja. 0 exercício de matemática
pressupõe o conhecimento de certas fórmulas e, nesta aprendizagem, memória e
inteligência foram ambas treinadas e desenvolvidas. 0 conhecimento da
literatura exige que o aluno retenha não somente nomes de autores e de obras,
mas dados cronológicos, sem os quais seria total a confusão. Assim como não se
pode ter conhecimentos históricos sem adquirir uma sólida bagagem de datas e de
fatos, não se poderia ter bom conhecimento geográfico sem uma base de
nomenclatura. É apenas um ponte de partida, mas indispensável. Por fim, ainda
no âmbito das preocupações utilitárias, não esqueçamos que a vida corrente
requer de cada um de nós esse conhecimento mínimo de nomenclatura geográfica, que é, para a ciência geográfica, o que a tabuada
de multiplicação é para a matemática: nomes de cidades, de rios, de montanhas, de produtos nacionais e estrangeiros,
aquisições de nossa memória infantil de tal modo integradas em nós mesmos, que
já nem nos lembramos de quando as adquirimos.
Um bom ensino de geografia, portanto, como qualquer
outro ensino, não pode deixar de recorrer à memória. É necesssário reduzir sem
medo a massa de nomes insípidos e de pormenores
sem valor; é necessário, sobretudo, reduzi-la a proporções mais justas.
Impõe-se uma escolha ao professor, a quem cabe a difícil tarefa de exercitar
com inteligência a memória dos alunos. E assim ergue-se diante de nós o
problema do preparo do professor de geografia, ao qual teremos que voltar. Mas,
mesmo reconhecendo até que ponto a maior parte dos professores de geografia
foram pouco ou mal preparados para seu trabalho, ainda assim causa espécie que
educadores, e mesmo simplesmente homens normais dotados de bom senso,
mostrem-se tão obstinados em transformar a geografia em instrumento de tortura
para crianças. Qual a fonte desse erro fundamental que faz confundir ensino da
geografia com memorização?
Há o desconhecimento
total da geografia e a convicção de boa fé, mas errônea, que um nome, um dado,
são "fatos geográficos" e que, a partir deles se elabora a ciência
geográfica Ora a geografia não é uma ciência de fatos isolados simples,
passíveis de serem conhecidos por si e em si. Neste mesmo erro incorrem os que
acreditam ensinar uma história científica porque ensinam "fatos"
históricos, acontecimentos e datas. Para melhor me tornar compreendido
permitam-me usar a palavra irônica dum historiador da Idade Média, Marc Bloch, que, tomando como exemplo a queda dum grande ministério da III
República Francesa, o ministério Jules Ferry,
parte para a pesquisa do fato histórico preciso, concernente a este evento
político.
Qual o fato e em que momento ocorreu? Surgem as
diversas hipóteses possíveis: o momento em que o presidente da Câmara de
Deputados proclama o resultado do escrutínio fatal? O momento exato (pois um
historiador "científico" deve fazer empenho em ser exato) no qual um
deputado, desconhecido, seja dito de passagem, depositou na urna o voto que fez
pender para um lado o prato da balança parlamentar? Não seria preferível fazer
referência à visita constitucional que o presidente do Conselho, em minoria,
fez ao presidente da República para entregar-lhe a demissão ou mais
precisamente, e ainda mais cientificamente, ao minuto em que o chefe de Estado
aceitou a renúncia do seu ministro? Pode-se ainda hesitar e, desejando-se
precisão histórica e jurídica ao mesmo tempo, poder-se-ia admitir que,
historicamente, a queda do gabinete Ferry se situa no momento em que saiu das
rotativas o número do jornal oficial da República Francesa, no qual estava
impresso o texto oficial da demissão.
Desculpem-me por esta digressão pouco séria pelo
terreno dos historiadores. Mas a lição que Marc Bloch daí extraiu é clara: o fato histórico não se reduz a uma simples
data; o verdadeiro historiador não se esgotará numa investigação, de aspecto policial,
das aparências do fato, pois sabe que o interesse histórico não reside nas
minúcias cronológicas mas sim na seqüência complexa das causas e conseqüências
da queda do ministério Ferry. 0 bom professor de história procurará tornar
compreensível esta seqüência complexa constituída por múltiplos e pequenos
fatos cronológicos, cuja reunião constitui um fato histórico. A história é
diferente da cronologia.
Transfira-se o exemplo do historiador para o campo
da geografia e chegaremos às mesmas conclusões. É erro comum e persistente
pretender tomar e ensinar fatos geográficos isolados e atomizados. Não é a
altitude das Agulhas Negras que é um fato geográfico, mas o conjunto do maciço,
constituído por certas categorias de rochas, situado num determinado conjunto
orográfico, submetido a certas condições climáticas que determinam certa
distribuição de vegetação, possibilitando certos modos de ocupação do solo pelo
homem e tornando possíveis certos produtos. Se quisermos um exemplo de
geografia humana, podemos encontra-lo na estação D. Pedro II da Central do
Brasil. A estação, em si, não é um fato geográfico; o fato geográfico é o
movimento dos trens, dos viajantes, das mercadorias, a sua proveniência, o seu
destino; fato geográfico serão também as conseqüências da presença dessa
estação na paisagem do bairro da capital onde se encontra, a circulação urbana
e seu ritmo cotidiano e estacional, uma determinada localização dos ramos de
comércio ligados a estação da estrada de ferro, etc.. Dizer que as Agulhas
Negras tem x metros de altitude ou que a estação D. Pedro II está situada em
tal rua do Rio de Janeiro, não satisfará o geógrafo, embora sejam duas
afirmativas indispensáveis, mas que são apenas a sombra enganadora do fato
geográfico. O geógrafo procurará o conjunto de fenômenos, como os que acima
enumeramos rapidamente, e os laços que os unem e fazem deles um todo vivo.
Portanto, a noção de fato geográfico tal como é
correntemente admitida é errônea e deve ser corrigida. Se ligarmos a noção de
fato à idéia de irredutibilidade, de precisão rigorosa e de valor intrínseco,
poderemos quase dizer que não existe fato geográfico e que o geógrafo não se
preocupa em estudar "fato" desta ordem. A pesquisa geográfica trata
dos complexos de fatos e são esses complexos que, por sua localização no globo,
são verdadeiros "fatos" geográficos. Cabe ao geógrafo explicar esta
localização, procurar-lhe as conseqüências, examinando as relações, ações e
interações que unem uns aos outros os elementos constitutivos do complexo
geográfico. Complexo geográfico, sim, porque se localiza e
porque implica em ações recíprocas mutáveis do meio natural e do meio humano. A
variedade dos componentes do complexo geográfico é tanto maior quanto mais
elevado é o grau de civilização técnica alcançado pelo grupo humano, existente
há séculos, se não milênios, e muito numeroso. 0 complexo geográfico
constituído pela zona açucareira do Nordeste é, provavelmente, de estudo mais
delicado que o complexo geográfico amazônico, mas sua análise recorre menos,
aparentemente, as disciplinas irmãs da geografia, que não seriam exigidas pelo
estudo do complexo geográfico "Rio de Janeiro".
A título de exemplo e de maneira muito esquemática,
gostaria de indicar o possível ponto de vista do geógrafo diante de um complexo
geográfico industrial. É sabido que a Lorena, região francesa, encerra no seu
subsolo enormes reservas de minério de ferro e importantes jazidas de hulha,
isto é, as bases de poderosa indústria metalúrgica. Não possuindo esse carvão a
qualidade exigida para a fabricação do coque, os metalurgistas lorenos
compravam sistematicamente o coque fabricado na Alemanha, mais precisamente no Ruhr.
Há quatro ou cinco anos atrás, os técnicos franceses conseguiram novos
processos que permitem tratar o carvão loreno e obter assim a moinha de coque,
utilizável in loco. Trata-se de uma invenção técnica cujos pormenores
não interessam a geografia, mas que começa a ter conseqüências de ordem
geográfica pois, a partir desses processos novos, desenvolve-se e complica-se o
antigo complexo geográfico loreno. Em primeiro lugar dá-se o desenvolvimento
das indústrias metalúrgicas pesadas, que arrasta o das indústrias mecânicas
mais leves. Esse desenvolvimento industrial pressupõe um afluxo de mão-de-obra,
operários, empregados de escritório, engenheiros, diretores, acompanhados ou
não de suas famílias. Paralelamente, assiste-se a abertura de novas usinas, ao aumento
da população urbana composta de elementos heteróclitos (inclusive numerosos
operários norteafricanos). Parece que essas novas atividades industriais
atraem uma parte dos trabalhadores rurais e, em conseqüência, a produção
agrícola reduz-se ou é orientada para novos produtos. Ao mesmo tempo, as
indústrias novas fornecem adubos químicos que, mais numerosos, mais variados,
menos custosos, determinarão uma evolução das culturas, dos sistemas agrários,
dos rendimentos e, portanto, dos níveis de vida dos agricultores.
Encontramo-nos em presença de uni conjunto de fenômenos estreitamente ligados
entre si e reagindo uns sobre os outros. Seria ainda necessário ressaltar que,
para serem compreendidos, deve-se conhecer a estrutura do solo onde se situam
as minas de ferro e de carvão, a hidrografia de superfície ou subterrânea que
condiciona a alimentação dos homens e boa parte do trabalho industrial, e a
circulação por via aquática, rios e canais. Igualmente, a rede de vias de
comunicação deverá ser ampliada a fim de permitir não somente a saída da
produção mas também a chegada dos materiais de construção e produtos de
alimentação necessários à enorme população que se reúne a volta das minas, e
junto aos escritórios, serviços públicos, etc.. Esta é a razão, entre outras,
por que se projeta para breve a execução dos trabalhos do Mosela e a
eletrificação da via férrea que une a Lorena à região industrial e agrícola do
norte da França. A possibilidade de utilizar o carvão loreno reduzirá as
compras de coque proveniente do Ruhr, determinando a modificação das correntes
de tráfego. Prevê-se desde logo que esta nova situação econômica, indiretamente
dependente da presença da hulha e do ferro em determinada região, facilmente
localizável, não deixará de trazer conseqüências que atingirão mais longe que o
quadro regional, sairão do domínio econômico e ecoarão no terreno
internacional. Por fim o aperfeiçoamento de novos processos técnicos é oneroso
(as pesquisas de laboratórios também o foram); não pode ser realizado por empresas
medianas, mas por associações novas, financiadas por grandes empreendimentos
metalúrgicos. Isto significa que a estrutura econômica das empresas lorenas
evolui para unia concentração cada vez mais acentuada. Por sua vez. a estrutura
financeira, fortemente concentrada, vai agir como fator geográfico, pois
acarreta a concentração espacial. Centros mais modestos de indústria
metalúrgica dificilmente poderão resistir á concorrência da poderosa indústria
lorena, também apoiada nos recursos naturais, dotada de equipamento moderno e
escorada por forte organização financeira. Já se assiste a migrações de
indústrias promovidas pelas grandes empresas e a redistribuição regional dos
diferentes ramos da produção.
Este é o complexo geográfico, em vias de organização,
a partir de aperfeiçoamentos técnicos. Fomos forçados a simplificar e resumir a
exposição dum processo infinitamente mais complicado do que aparece aqui. Mais
uma prova da delicadeza do complexo geográfico. Este se exprime antes de tudo
na paisagem, a qual, formada una e indissoluvelmente pelos elementos naturais e
pelos trabalhos dos homens, é a representação concreta do complexo geográfico.
Por esta razão o estudo da paisagem constiui a
essência da pesquisa geográfica. Mas é absolutamente indispensável que o
geógrafo não se limite á análise do cenário, à apreensão do concreto. A
paisagem não exterioriza todos os elementos constituintes do complexo. Nem
sempre nela se encontrarão expressos com clareza os modos de pensar, as
estruturas financeiras que são, entretanto, parcelas apreciáveis do complexo
geográfico. Outro perigo: a limitação do campo de estudo geográfico à paisagem
ameaça levar o pesquisador ao recurso exclusivo da descrição. Este olha,
observa minuciosamente e com perfeito espírito científico, mas tende a esquecer
o essencial, que é a explicação. Satisfaz-se com ser uma excelente máquina
fotográfica e, nesse jogo atraente, prende-se menos à análise dos
processos do que à sua descrição. Passa ao lado dos problemas, pois, submerso
pela massa dos fatos observados, já não pode distingui-los com clareza. A
paisagem é um ponto de partida, mas não um fim. Resulta do complexo geográfico,
sem confundir-se com ele.
Espero ter explicado suficientemente até que ponto nossa geografia se preocupa
mais com os laços que dão origem ao complexo geográfico, do que com os fatos
isolados que o compõem. Fatos de origens diversas, umas físicas, outras
biológicas ou históricas, econômicas ou psicológicas, associam-se em
determinados setores do planeta. A associação deles é, às vezes, produto do
meio regional, mas caracteriza uma região que pode ser cartografada e cuja
extensão é a mesma do complexo geográfico. Estamos longe da simplicidade, de
aparência enganadora do pretenso fato geográfico isolado e conhecemos agora o
que constitui o tema fundamental da pesquisa geográfica moderna. Não é de
admirar que esse bom geógrafo, viajante impenitente por itinerários estranhos,
colecionador de nomes exóticos e evocadores, se tenha tornado um personagem
sério, um desses cientistas que, por vias diferentes mas com o mesmo amor,
ocupa-se em decifrar a complexidade de tudo que existe no globo. Para
compreender essa evolução da geografia, basta pensar que ela acompanhou o mesmo
ritmo das demais ciências naturais ou sociais. Basta-nos a reduzida experiência
individual do cidadão que vive nos meados do século XX para ensinar-nos que
nada é simples. Não seria normal que essa mesma descoberta escapasse ao
geógrafo... Possuímos todos suficiente conhecimento do inundo para saber que
nada é mais mutável que o comportamento das sociedades humanas diante do meio
natural. Vivemos mesmo esta grande experiência que é o domínio cada dia mais
completo do meio por nossa ciência, por nossos técnicos, por nossos meios de
produção. Esta revolução nas relações entre as sociedades humanas e os
meios naturais é muito recente, e diante de nossos olhos, adquire proporções
inéditas. Ainda há poucos anos poder-se-ia acreditar que a habilidade dos
homens seria impotente para mudar os climas, agir sobre o céu. E, entretanto,
até mesmo esse limite se esboroa. Diante de tal revolução não causa espanto
verificar a inversão dos termos do problema geográfico. 0 pensamento
científico do século XIX foi grandemente dominado pelo progresso das ciências naturais.
A descoberta da natureza era um assombro muito recente. Por outro lado, não
parece que as sociedades humanas suscitassem problemas tão graves quanto as
ciências; era então a grande época da conquista das liberdades políticas, mas
não ainda a das angústias econômicas e sociais. Os geógrafos partilhavam com
seus contemporâneos a tranqüila confiança nos destinos humanos, mais ou menos
convencidos de que o melhor conhecimento da natureza acabaria por conferir à
humanidade o poderio total, garantia de sua felicidade. A estrada do progresso
abria-se para esse horizonte. Nesse clima filosófico, era normal que a
geografia física se avantajasse frente à geografia humana e que as imposições
do meio fossem consideradas a chave do comportamento humano. Os mecanismos
causais pareciam relativamente simples.
Se, desde então, todos os conhecimentos
científicos e suas aplicações técnicas progrediram bem além do que seria de
esperar, nossa inquietação cresceu terrivelmente. Guerras, revoluções, fome,
desemprego, vida em campos de concentração, aniquilaram toda tranqüilidade;
são, como as Erínies, a compensação do "progresso". Se já não
duvidamos do poder sobre a natureza que nos confere a ciência, o homem [a
sociedade] torna-se o centro de nossa preocupação. Por um paradoxo
apenas aparente, quanto mais se desenvolvem ciências e técnicas, mais duvidamos
do futuro de nossas sociedades. Os geógrafos são arrastados para o movimento do
pensamento da época
atual, da mesma maneira como o haviam sido seus predecessores em tempos mais
eufóricos. Por suas próprias pesquisas que os colocam, tal corno muitos outros
pesquisadores, em contacto imediato com os homens, não podem escapar a
inquietação hodierna. Automaticamente, o homem ocupa o centro das
pesquisas. Em lugar de partir das condições ambientes para chegar aos grupos
humanos, a geografia tende cada vez mais a tomar estes últimos como ponto de
partida. A essa substituição dos termos dos problemas geográficos
corresponde o abandono das explicações unilaterais. Nada mais é simples, bem o
sabemos, e os geógrafos melhor ainda, razão pela qual a sua geografia abandonou
os fatos particulares para se voltar para a combinação de fatores.
Ao delinearmos esta evolução do pensamento
geográfico, não nos afastamos do problema do valor da geografia. Pois esta
evolução basta para provar que a geografia não é simples enumeração. A lista
telefónica do Rio de Janeiro é hoje mais extensa do que em 1914, mas continua a
ser uma seqüência de nomes. Novas estações ferroviárias foram inauguradas entre
o Rio e São Paulo, mas sua simples enumeração continua a ser uma enumeração
desprovida de inteligência. Se a geografia se reduzisse apenas a nomenclatura,
sem conteúdo filosófico, continuaria imutável. A forma enumerativa nada mais é
do que o fruto da ignorância crassa do que é a geografia. Além disso, admite-se
facilmente que as operações mnemônicas não sejam as únicas atividades
intelectuais capazes de orientar o geógrafo que estuda as relações dos
complexos. A interpretação do encadeamento dos fatos depende do trabalho
intelectual, no qual o encadeamento das idéias é primordial. Podemos perceber
isso acompanhando a análise do mecanismo intelectual na pesquisa geográfica tal
como aparece num artigo do professor Henri Baulig.
A primeira fase seria a da explicação. Faz-se
mister tomar a palavra no seu sentido etimológico, isto é, desenvolver,
desenrolar (explicare em latim designa a ação de desenrolar o rolo de
pergaminho manuscrito). Depois de ter explicado, o geógrafo deve compreender,
isto é, deve reunir todos os fatos por ele desenrolados, procurando torna-los
em conjunto, como uma unidade. Se, a esta interpretação humanista do método
de pensamento do geógrafo, preferir-se outra, poder-se-ia dizer que o geógrafo
se encontra em face dum complexo geográfico, como um mecânico diante de um
motor desconhecido cuja disposição quisesse conhecer. É necessário desmontar as
peças que compõem o motor, tendo porém o cuidado de identificar cada elemento,
de ver como se ajusta a outro, de conhecer-lhe a função e avaliar-lhe a
importância no conjunto. Este trabalho de desmontagem do motor é a explicação
do complexo geográfico. Depois de identificadas todas as peças,
numeradas, classificadas, nosso mecânico se encontra melhor preparado para
conhecer de que modo a sua união constitui um motor e como funciona este. Ele
"compreende" porque pode, segundo a análise, apreender as relações
dos diferentes elementos entre si e graças a esse primeiro trabalho, descobrir
como cada um contribui para a boa marcha do conjunto.
Tais são os objetivos e as diretrizes da geografia
e de seu método. Uma vez feita esta indispensável mise-au-point tornase
mais fácil compreender que o ensino da geografia é capaz de auxiliar a expansão
das funções intelectuais dos jovens. Deve ficar bem claro ser esse o papel
fundamental do ensino, e muito particularmente do ensino secundário. Enviamos
nossos filhos às escolas não somente para que encham suas cabeças, mas
principalmente para que o façam bem. Esperamos dos professores que ensinem a
nossos filhos literatura, matemática, línguas mortas ou vivas, história,
geografia, ciências físicas e naturais, mas também exigimos que esses
professores lhes desenvolvam as faculdades intelectuais ainda embrionárias. Da
mesma forma que o treinador de desportos põe os músculos em condições de
trabalho, o professor, treinador espiritual, tem o terrível encargo de ensinar
os alunos a observar, refletir, criticar e escolher. Aquilo que, no ensino, não
permitisse desenvolver essas faculdades mereceria ser abolido dos programas sem
o menor escrúpulo. Vamos tentar demonstrar como a geografia responde as
exigências dum ensino que mais procura formar a mente do que entulhar cérebros.
Em todas as séries escolares, mas sobretudo
nas primeiras, o professor de geografia deve procurar desenvolver nos alunos o
espírito de observação e de precisão. 0 resultado é facilmente obtido
acostumando-se a criança a examinar e explicar com atenção um mapa, por mais
simples que seja, uma figura, uma projeção fotográfica. 0 aluno deve ser
exercitado progressivarnente na localização precisa e na descrição do documento
que lhe é apresentado. Não seria conveniente que esse documento fosse muito
científico e complicado. 0 professor deve, ao contrário, limitar-se ao menos no
começo, a oferecer somente mapas e figuras muito simples, pedindo aos alunos
que descrevam primeiro os principais elementos. Somente depois disso poderá passar
às minúcias e finalmente será possível tentar fazer os alunos descobrirem e
exporem as relações existentes entre os diferentes fatos anteriormente
conhecidos, descritos e identificados. A tarefa é modesta; alguns a julgarão
mesmo excessivamente modesta; e a tacharão de pueril. Isso porque se esquecem
de sua própria infância e não sabem que um aluno das primeiras séries ginasiais
[atuais 5a. e 6a. séries do
ensino fundamental] possui ainda uma extraordinária juventude
intelectual e suas faculdades de raciocínio são ainda extremamente limitadas.
Nesse grau de ensino, o papel do professor de geografia assemelha-se ao do
professor de línguas, que ainda não pretende de seus alunos comentários
literários, mas pede-lhes sobretudo exercícios de redação elementares,
descrições, narrativas. Ora, o menino dotado mais de imaginação do que de
raciocínio, presta atenção às coisas pequenas, aos pormenores secundários,
negligenciando as grandes linhas e raramente sendo capaz de abranger o conjunto
à primeira vista. É portanto nesse sentido que se deve dirigi-lo, levando-o progressivamente
a adquirir uma visão de conjunto completada pela precisão da descrição. Uma boa
carta mural, uma fotografia escolhida com inteligência e projetada para a
classe, ou, na sua falta, as ilustrações dos bons manuais de geografia,
prestam-se facilmente a este gênero de exercícios. Não é necessário dizer que
esse treinamento não deve ser reservado exclusivamente aos alunos mais novos.
Convém adotá-lo até nas últimas classes colegiais [atual ensino médio]. Para evitar a monotonia e,
aproveitando o crescente amadurecimento intelectual dos alunos, os professores
apresentarão documentos mais complexos e procurarão obter observações cada vez
mais agudas. Conhece-se o bom professor pela sua arte em graduar as
dificuldades e em saber adaptar o ensino a idade mental e a qualidade de seus
alunos. Não só a faculdade de observação aproveita o ensino da geografia, mas também ao espirito crítico, pois o jovem interrogado
sobre uma carta ou uma fotografia é obrigado a escolher entre o essencial e o
secundário. Aprende assim a raciocinar com método e a exercitar-se na escolha
dos dados apresentados à sua observação. Ao mesmo tempo sua mente habitua-se a
reconhecer as relações entre os fatos. Relações muito simples no começo; como
por exemplo, entre um certo clima e certa produção vegetal; depois, relações
mais complexas que não são exclusivamente de causa e efeito, mas que ensinam que
nem tudo é um jogo de ações recíprocas. Chega-se assim, muito devagar, e
sempre com a grande preocupação de não ter excessiva ambição nem de fazer
ciência, a apresentar a compreensão dos alunos complexos geográficos que eles
só podem compreender por meio de um trabalho de raciocínio crítico. Em tudo
isso o professor fugirá como da peste do uso de termos eruditos e
excessivamente técnicos; não convém que fale de "complexo
geográfico", a menos que sinta sua classe em condições de perceber o valor
filosófico do conceito. O professor de geografia no curso secundário tem
obrigação de ser muito prudente e de não pretender pensar em preparar pequenos
geógrafos. Sua posição é a mesma de todos os professores de ginásio, cuja
missão não é recrutar especialistas desta ou daquela matéria, mas colaborar com
todos os seus colegas na formação de mentes capazes de pensar e de criticar.
Finalmente, o ensino da geografia desenvolve o
senso do tempo e ajuda a compreender a noção da evolução. Relevo, solos,
gêneros de vida, modos de ocupação do solo, correntes de comércio, potência das
nações, tudo evolui e cada capítulo de um curso de geografia consigna esta
constante transformação, indicando-lhe simultaneamente os fatores e as
consequências. Esse aspecto da geografia, portanto, ressalta que o ensino bem
feito dá aos jovens o senso da realidade e ao mesmo tempo o da evolução. Pode
ajudá-los a se compenetrarem de sua posição exata na curva do tempo; de
herdeiros do passado e germes do futuro. Resultado esse obtido não por meio de
frases e discursos que os jovens não escutariam ou de que pouco se lembrariam,
mas por fatos exatos cuja lição aparece automaticamente. Tanto mais que os
alunos estão numa idade em que fazem questão de ser modernos e realistas.
Senso de realidade, sentimento de evolução,
compreensão da complexidade das relações não são apenas aquisições da
inteligência, mas poderosos
auxiliares que positivam as qualidades morais. Outro aspecto favorável do
ensino geográfico moderno deve agora prender nossa atenção: seu valor no ensino
cívico e moral. Jovens alunos ou alunas de colégio estão em vésperas de se
tornarem cidadãos, eleitores num grande país moderno. Ao se depararem com os
problemas do país, estes jovens cidadãos devem ter, quando não uma opinião
definitiva, ao menos urna idéia de sua importância. Não se concebe que o
ensino, a que compete preparar os homens, não seja igualmente uma escola de
cidadãos. Outros professores, além dos de geografia, contribuirão para
formá-los. Será prova de imperialismo geográfico perguntar-se se não cabe ao
geógrafo a parte essencial desse preparo cívico? Um jovem brasileiro aprenderá
na aula de geografia o que é o problema das secas ou a questão do esgotamento
dos solos, pois o ensino da geografia física e o da geografia do Brasil darão
ao professor a oportunidade de discuti-los. As aulas de geografia humana serão
outras tantas ocasiões para facilitar o conhecimento dos problemas de
imigração, de colonização, de dispersão ou de agrupamento de populações. Serão
conhecidos na aula de geografia todos os tipos humanos do Brasil, não como
temas literários, mas como seres vivos em meios naturais definidos,
representando papéis definidos na vida social do país, exercendo atividades
econômicas diversas na economia nacional. A eficácia da geografia econômica não
será menor. Certamente não se trata dessa caricatura de geografia econômica que
consistia em enumerar os países e seus produtos, classificando-os por ordem de
grandeza, como o locutor que proclamasse os resultados duma corrida de cavalos.
Referimo-nos a uma geografia econômica explicativa que, estreitamente ligada a
realidade, indique problemas e tendências. Não havendo tal ensino, e não sendo
dado por professor adequadamente preparado, então onde, quando e como o jovem
cidadão apreenderá o que é o problema de industrialização do Brasil, em que
consiste seu comércio exterior, do qual depende tão de perto seu nível de vida?
Onde, quando e como conhecerá algo a respeito da economia de outros países, das
rivalidades econômicas, dos aspectos do mundo que condicionam a vida de cada
nação?
Convém que o ensino acompanhe as
transformações do globo. Outrora talvez a geografia não coubesse ação tão
relevante na formação do futuro cidadão, pois os problemas políticos possuíam
então a importância que atualmente adquiriram as questões econômicas. Os
cidadãos dos vários países não se manifestavam, como em nossos dias, por meio
do voto, cujas consequências podiam influir na evolução das economias de modo
tão decisivo. Para um mundo moderno convém um ensino moderno e a geografia é
uma interrogação permanente do mundo. A evolução do ensino da geografia,
nesse sentido, é facilitada pelos contatos de todo o gênero que tem a mocidade
com os problemas de nossos dias. A conversação em família, o rádio, a televisão,
os jornais, as atualidades cinematográficas mergulham os jovens, e as vezes até
as crianças, nesse banho cotidiano de inquietação, pelo menos no que se refere
aos debates econômicos. Não é difícil ao professor aproveitar-se disso para
animar o seu ensino. Os alunos encontrarão aí uma prova de que a
vida não pára na porta da classe, que deixará de ser um meio artificial. A
ânsia de viver dos jovens ajusta-se mal ao divórcio entre a rua e sua agitação
e a escola que se esclerosa. Eles adquirem urna espécie de desprezo protetor
pelos mestres que vivem fora do tempo e seu realismo os afasta do esforço
intelectual que podem, de pleno direito, confundir com meros jogos de espírito.
Acrescentemos que é desejável que o ensino venha esclarecer e ordenar a confusão
que as informações diretas criam nos cérebros jovens.
A geografia encontra no ensino cívico sua função de
representar o mundo, de que é detentora, na qualidade de trabalho intelectual.
Daí o seu valor moral, pois, contribuindo para a compreensão do mundo, revela
tudo o que une os homens: é uma lição de solidariedade humana. Nem só os
diferentes aspectos da economia brasileira devem ser ensinados, mas também, ao
jovem gaúcho, como vive, como luta seu irmão sertanejo nordestino; o jovem
carioca ou paulista deve ser levado para fora da atmosfera urbana a fim de
conhecer e sentir a vida de seus patrícios, colonos de fazendas ou pescadores
amazonenses. Uma aula sobre o algodão nos Estados Unidos ou sobre a índia
moderna, uma exposição sobre o equipamento industrial europeu, ensinam mais a
respeito da unidade do mundo de que todas as homílias tradicionais.
Graças ao seu campo de estudo, ao seu método de
trabalho, a geografia tem lugar no ensino. Tem-no por ser uma ciência moderna,
produto de um mundo que é o mesmo em que vivem os jovens. Ela desenvolve as
suas qualidades intelectuais e morais, e dá-lhes um conhecimento dos mais úteis
para o pleno desenvolvimento de suas personalidades no quadro em que devem
desabrochar. A geografia é uma das formas do humanismo moderno.
É grande a defasagem entre o ensino de tal
geografia e o que atualmente é dado em grande número de classes. Aceita-se de
boa mente que a causa disso está menos na geografia do que naqueles que
acreditam ensiná-la. Fosse melhor o conhecimento dos trabalhos e concepções
geográficas atuais e não se pensaria em reduzir o ensino da geografia;
dar-se-ia, ao contrário, mais atenção aos processos de recrutamento e formação
dos professores. O mal não está na disciplina ensinada, mas na forma como é feito
esse ensino, por professores cujos conhecimentos e noções teóricas estão aquém
do atual estado da ciência. Se é lícito interpretarmos o pensamento de nossos
próprios colegas, diria que os geógrafos são os primeiros a desejar unia
mudança no ensino da geografia, que julgam possível, desde que se entregue,
progressivamente, um número maior de cadeiras a professores especialmente
preparados, isto é, professores que tenham recebido um bom ensino de urna
geografia diferente da de 1850. Reconhecido o valor formativo da geografia, e
lembrando que os programas de países como os Estados Unidos, Inglaterra, França
ou Alemanha não reduzem o ensino desta disciplina, é lógico pensar que os
jovens brasileiros também merecem aprender geografia; e que têm o direito de
aprendê-la em boas condições.
Ninguém pode improvisar-se professor. Salvo casos
excepcionais, aquele que exerce urna certa profissão não está, só por isso,
apto a ensinar uma disciplina científica, da qual nada aprendeu desde a
juventude. Nenhum professor de geografia pensaria em improvisar-se engenheiro
ou advogado. A recíproca deveria ser verdadeira. É quase um lugar comum
comparar o ensino a um apostolado, mas ninguém pensaria em improvisar-se
padre, e os padres que se dedicam ao ensino realizam estudos especializados e
rigorosos. A qualidade do ensino lucrará com o severo preparo dos professores
em cada especialidade e a proibição absoluta de ensinar toda e qualquer
disciplina ao indivíduo que não recebeu uma formação científica e didática.
Dizem que um licenciado em ciências sociais pode improvisar-se professor de
geografia. Mas que conhecimentos de geografia física possui ele? Que conhece a
respeito das relações complexas sobre as quais já falamos longamente? É óbvio
que se reconhecermos no sociólogo capacidade suficiente para ensinar geografia,
conviria dar a mesma possibilidade ao botânico ou ao geólogo, e,
reciprocamente, autorizar o geógrafo a ensinar sociologia, botânica ou
geologia. A confusão chegaria ao auge e os alunos teriam tudo a perder. Desde
que as poucas faculdades de filosofia bem equipadas existentes no Brasil formem
licenciados em geografia, o bom senso sugere que se lhes entregue o ensino de
sua disciplina e que se coloquem essas faculdades em condições de fornecer um
número cada vez maior de verdadeiros professores. (...)
“Papel e valor do ensino da geografia e de sua pesquisa”, publicado
originalmente in Boletim Carioca de Geografia, ano VII, 1954, nos.
1 e 2 ; e republicado como um capítulo do livro Novos Estudos de
Geografia Humana Brasileira, São Paulo, Difel, 1957. A seleção, transcrição
e também os grifos, em itálico e/ou negrito, são de nossa autoria, J.W.V.)